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:: O Sexo dos Livros...




Francisco Allen Gomes foi chefe de serviço da Clínica Psiquiátrica dos Hospitais da Universidade de Coimbra e responsável pela Consulta de Sexologia entre 1975 e 2001. Em 1987, coordenou com Afonso de Albuquerque e Júlio Silveira Nunes a publicação, em dois volumes, da obra A Sexologia em Portugal. Em 2003, em colaboração com Tereza Coelho, publicou o livro A Sexualidade Traída – Abuso Sexual Infantil e Pedofilia. Em Paixão, Amor e Sexo, reúne os textos que editou ao longo dos anos sobre sexualidade.


Há alguma passagem literária que ajude a descrever a sua vida?Um diálogo com um capelão, no livro de André Malraux, As Antimemórias (1967) [Allen Gomes procura o livro na estante e lê]: “– Há quanto tempo confessa? – Há uns 15 anos.– Que lhe ensinou a confissão a respeito dos homens? – Sabe, a confissão não ensina nada. Porque quando se confessa somos outro, há a graça. E contudo… olhe, em primeiro lugar as pessoas são muito mais infelizes do que se imagina. Ergueu os braços para o céu saturado de estrelas: ‘E depois o que se fica a saber é que não há grandes pessoas.’” Isto é a minha vida, sem nunca confessar ninguém. Apesar de tudo são os livros que nos permitem dar sentido a experiências clínicas, sinais, sintomas que as pessoas têm.









Francisco Allen Gomes, 65 anos, psiquiatra, terapeuta sexual é um nome incontornável na história da sexologia no nosso país. Autor do livro Paixão,
Amor e Sexo, abre as portas da sua biblioteca para falar da importância da literatura para a edificação do imaginário sexual feminino.
Por Isabel Freire
Acontece-lhe ir buscar à ficção compreensão para situações que lhe passam pelo consultório?
Permanentemente. A literatura ajuda-me muito a compreender a vida dos casais. Por exemplo, quando encontro pessoas muito preocupadas com o fim da paixão, lembro-me dos Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Marquez, o meu escritor favorito. No livro, duas personagens que têm um romance tórrido acabam por descobrir que o tédio tem mais potencialidades eróticas do que a fúria da paixão. De facto, se duas pessoas se sentem muito atraídas, não custa nada – custa depois, depois é que começa a história.
Lembra-se de alguma definição de erotismo na literatura?
Vargas Llosa escreveu que o erotismo é o que permite a um casal normal, no segredo da sua alcova, e em determinados momentos, conseguir ultrapassar o génio que leva à formação de uma grande ópera, de um grande livro. Ou seja, pessoas banais podem emular às grandes criações artísticas, numa ou noutra relação sexual.
Os quatro volumes que formam o Quarteto de Alexandria.
Por quem os Sinos Dobram e Cem Anos de Solidão, duas referências literárias para aquele especialista.

Há alguma passagem literária que ajude a descrever a sua vida?
Um diálogo com um capelão, no livro de André Malraux, As Antimemórias (1967) [Allen Gomes procura o livro na estante e lê]:
"– Há quanto tempo confessa? – Há uns 15 anos.– Que lhe ensinou a confissão a respeito dos homens? – Sabe, a confissão não ensina nada. Porque quando se confessa somos outro, há a graça. E contudo… olhe, em primeiro lugar as pessoas são muito mais infelizes do que se imagina. Ergueu os braços para o céu saturado de estrelas: ‘E depois o que se fica a saber é que não há grandes pessoas.’” Isto é a minha vida, sem nunca confessar ninguém. Apesar de tudo são os livros que nos permitem dar sentido a experiências clínicas, sinais, sintomas que as pessoas têm.
A literatura está cheia de amor e paixão. O sexo é menos literário?
Cada vez mais me convenço de que a paixão é sexo. O termo ‘paixão’ é apenas
uma elaboração racional para justificar uma poderosíssima atracção sexual, que é, aliás, um conceito recente na nossa história. E defendo o mesmo em relação ao amor à primeira vista. Como é que desconhecendo uma pessoa podemos dizer que é o homem ou a mulher da nossa vida? Afinal o que é isso, se não atracção sexual?! Porquê essa necessidade de camuflagem do sexo? O sexo foi sempre considerado algo menor, ‘animal’. Por isso, foi necessária uma elaboração intelectual para o tornar legítimo. E realmente a paixão trouxe essa legitimação. --- A literatura acompanha essa evolução conceptual? Eu acho que a literatura se vai adaptando. No entanto, não há uma diferença assim tão substancial entre o amor romântico dos séculos XVII, XVIII e a paixão dos nossos dias. Apesar de se considerar que o amor romântico não é uma proposta actual, as pessoas continuam a raciocinar nesses termos – a diferença é que estamos perante amor romântico acrescido de sexo (embora seja o sexo que está na origem do amor romântico).
Nas suas consultas as pessoas falam dos livros?
Sim, algumas. A literatura tem propriedades mais erógenas junto do público feminino? Provavelmente. Segundo alguns estudos, as mulheres reagem muito melhor ao erotismo sob a forma de literatura do que sob a forma de imagem.
Francisco Allen Gomes foi chefe de serviço da Clínica Psiquiátrica dos Hospitais da Universidade de Coimbra e responsável pela Consulta de Sexologia entre 1975 e 2001. Em 1987, coordenou com Afonso de Albuquerque e Júlio Silveira Nunes a publicação, em dois volumes, da obra A Sexologia em Portugal. Em 2003, em colaboração com Tereza Coelho, publicou o livro A Sexualidade Traída – Abuso Sexual Infantil e Pedofilia. Em Paixão, Amor e Sexo, reúne os textos que editou ao longo dos anos sobre sexualidade.
Também investiga por impulso da literatura?
Em 1964, quando o Jean-Paul Sartre recusou o prémio Nobel da Literatura, eu estava em Sevilha. Tinha comprado as obras completas do Federico García Lorca, interessava-me por flamenco e corridas de touros. Percebi que uma corrida era feita com uma ‘limpeza’ extraordinária. Não se perdia tempo: entre o touro sair, ser toureado, picado e morto, decorriam apenas 10 minutos. Mas, entretanto, surgiram toureiros que se propunham lidar animais rapidíssimos de forma lenta. Achei que era muito parecido com o sexo! De facto, se dois adultos quiserem ter uma relação sexual ‘higiénica’, podem fazê-lo em cinco minutos. Aliás, as casas de prostituição mostravam isso. O indivíduo escolhia uma prostituta na sala, iam os dois para o quarto, despiam-se, tinham uma relação sexual, ela lavava-lhe o pénis, vestiam-se, vinham para a sala… tudo em 10 minutos. O erotismo é o que contraria esta determinante biológica que faz com que o sexo seja rápido. Se o casal conseguir prolongar o tempo de sexo (se souber ir para a frente e para trás, controlando o orgasmo), em certos dias, conseguem fazer uma boa composição. As corridas eram uma metáfora para compreender o sexo?
Provavelmente, mesmo que na altura não tivesse essa consciência. O que fui observando é que o sexo está presente em tudo, apesar de ter sido tratado como se não estivesse presente em nada. Vejamos: é a causa de estarmos neste mundo, é responsável por códigos religiosos, éticos, jurídicos e outros. Mas era tratado como algo impróprio (horroroso) ou desinteressante (que era preciso romantizar para o tornar aceitável e sofrível).
E hoje?
Estou convencido de que ainda há muitas coisas parecidas com esta época. O sexo ainda é considerado um mal necessário. Está muito presente, é muito importante, ou porque as pessoas têm de se vestir de determinada maneira, ou porque têm de se aproximar umas das outras, mas depois… para se praticar, são muitas vezes necessários shots de bebida ou outras substâncias que baixem os nossos níveis de censura (e provavelmente passados dois dias nem temos bem a certeza se o fizemos).
Acho que o sexo ainda não é visto como uma experiência orgulhosa. Quem são os grandes escritores do sexo?
Não sei [levanta-se, olha para as prateleiras]. Escritores do sexo, que só escrevem a partir do sexo? Não estou a ver. Mas há autores muito marcantes, se pensarmos em abordagens da sexualidade: Emile Zola, Guy Maupassant, Jorge Amado.
Henry Miller?
Para Francisco Allen Gomes, o sexo ainda não é visto como uma experiência orgulhosa. “Foi necessária uma elaboração intelectual para o tornar legítimo.” Era um sexo provocatório, uma forma de luta e contestação. Era a pornografia, não era sexo como experiência erótica. Acabava por ser mais excitante tê-lo na estante do que lê-lo.
Lembra-se de descrições literárias com propriedades excitantes?
As cenas de amor em Por Quem os Sinos Dobram (1940), do Ernest Hemingway! Aqueles diálogos eram profundamente eróticos. Também o Quarteto de Alexandria (Lawrence Durrell), obras em que o sexo tem uma presença muito forte.
Foi consumidor de literatura erótica, na sua juventude?
Não havia muita. Nos finais dos anos 60 apareceram as primeiras traduções do Marquês de Sade, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Natá-lia Correia), e havia alguma BD (por exemplo, A Marca dos Avelares, histórias de uma família de homens com pénis enormes) que se comprava em determinadas tabacarias. Também me lembro dos livros da brasileira Cassandra Rios, com descrições eróticas tórridas, que eu achava altamente estimulantes. Na primeira metade do século passado a leitura deste tipo de descrições estava proibida às mulheres… Nas prateleiras de uma qualquer biblioteca que tivesse os chamados “romances de amor” para um consumo tipicamente “feminino”, poderíamos encontrar livros de autores como Guido da Verona (nomeadamente Mimi Bluette, A Flor do Meu Jardim, publicado em 1918). Era a história de uma bailarina de cabaret e as cenas de amor eram quentes, sensuais. Atenção que hoje continuariam a sê-lo. Eram livros contemporâneos de D. H. Lawrence, autor de O Amante de Lady Chatterley (1928), uma obra proscrita, mas o autor tinha outros com cenas de amor eventualmente mais estimulantes.
Chegou a ler Mimi Bluette, A Flor do Meu Jardim?
Sim, por volta dos 13 anos.
Isso era/é educação sexual?
Sim, completamente.
As mulheres continuam a precisar dessa educação sexual literária?
Estes livros permitiam a aprendizagem da estruturação do romance feminino, da narrativa do encontro amoroso e da verbalização dos afectos, sendo que alguns deles tinham também uma componente erótica.
Descreva uma cena erótica literária que a sua memória tenha guardado…
Há uma cena nos Maias, de Eça de Queiroz, que acho de um erotismo carregadíssimo, apesar de não ser explícita. Carlos está com Maria Eduarda e já sabe que são irmãos. A certa altura há um gesto, uma coxa que fica em evidência e eles fazem sexo. Aí há transgressão, ele sabe que está a ‘pecar’! Não voltei a ler a cena para não estragar esta memória.
Quando aconselha os seus pacientes a trabalharem o imaginário erótico, faz sugestões de leitura?
Não muitas vezes. Parto do princípio de que o que pode despertar uma pessoa, pode não funcionar com outra.
As mulheres portuguesas deviam trabalhar mais o seu imaginário erótico a partir da literatura?
Sim, estou completamente convencido disso. Muitas vezes me questionei sobre como aconselhar certas pessoas que eram autênticas folhas em branco em matéria de fantasias. Mulheres que se distraíam durante o acto sexual e não chegavam a lado nenhum. Eram provocantes, estimulantes, exibicionistas, mas não conseguiam ter prazer. Algumas delas, se estivessem a ler, conseguiam ir até ao fim, com excitação.
Isto acontece porquê?
Estas mulheres foram habituadas a pensar a excitação como sinónimo de perigo. E o livro era uma forma de se defenderem destes pensamentos de evitação. Enquanto liam, o pensamento de censura não entrava.
Publicação da Revista Máxima